Orquestra Errante Vol. 2

Gravar improvisações livres? Talvez esta seja uma atividade contraditória e sem sentido uma vez que uma das características deste tipo de prática musical é a sua irreversibilidade: as performances são sempre únicas e irrepetíveis na medida em que se relacionam primordialmente com o tempo, o espaço e as condições específicas de sua realização. Não há um referente criado anteriormente (um tema, uma estrutura harmônica, uma forma definida, etc.), não existe um regente ou um compositor… A improvisação livre é um espaço de relações e de presença e seu agenciamento é composto de vontades, sensações e emoções que interagem em tempo real. Além disso, os agentes são não só humanos (os/as performers com suas biografias pessoais e musicais, seus desejos e expectativas no momento da performance), mas também não-humanos (os instrumentos, equipamentos, microfones, arquitetura, condições acústicas do momento, o clima etc.) e o fundamental é o que se passa entre todos estes componentes. Por isso dizemos que o contexto agencia o texto e que este é produzido coletivamente e em tempo real. A proposta original da Orquestra Errante é justamente a preparação de um ambiente propício a este tipo de prática musical. Mesmo assim, podemos apontar aspectos positivos: a gravação pode ser pensada como uma memória ou um registro, como uma foto ou um filme. Ao ouvir a gravação de uma improvisação livre temos uma ideia dos agenciamentos, das forças em jogo, das negociações e das conversas. E entender estes agenciamentos é muito mais relevante do que emitir algum eventual juízo de valor estético sobre os resultados sonoros das performances. Aqui a dimensão estética está intimamente ligada à dimensão ética. É claro que nessa escuta se perde aquilo que só é possível vivenciar no momento mesmo da performance. Mas a escuta de uma gravação também é uma espécie de repetição que recupera a diferença e que possibilita outros tipos de agenciamento que podem incluir pessoas (ouvintes) que não testemunharam a performance. Por isso, pode valer a pena sim, gravar improvisações livres. Mas há um outro aspecto importante das gravações e que se relaciona com o fato de que a OE não se dedica somente à improvisação livre. O grupo, que almeja a preparação e a manutenção de um espaço horizontal e democrático, se dedica também a outras formas de criação experimental coletiva realizando performances em que o tempo real convive com algum grau de preparação anterior. Na gravação do nosso CD, todxs xs membrxs da OE puderam preparar, coordenar e produzir alguma proposta. Cada uma dessas propostas – nos mais diversos formatos – foi apresentada e discutida pelo grupo antes de ser gravada e se tornar uma faixa do CD (é importante dizer que nem todos fizeram propostas e que cada proposta é devidamente explicada por seus proponentes nos textos que acompanham o CD). Nesse processo, a OE incorporou práticas que são possibilitadas pelo estúdio de gravação, utilizando o que é próprio desse ambiente (overdubs, edições, mixagens etc.) Por tudo isso, acreditamos que o ambiente criativo do grupo também se coloca como um espaço de resistência. Gostamos de pensar que os agenciamentos que ocorrem neste ambiente funcionam como uma estratégia de insurgência contra as capturas do desejo promovidas pelo capitalismo neoliberal. Essas capturas se baseiam na disseminação dos certos valores – egocentrismo, individualismo, meritocracia, consumismo, produtivismo e mercantilização de tudo – que no Brasil são sustentados por um discurso de ódio caracterizado pela intolerância, racismo, misoginia, machismo e homofobia. Esse novo formato de neoliberalismo associado ao neofascismo promove a colonização do desejo, capturando-o para torná-lo impotente e cativo. O desejo assim corrompido é usado para reproduzir o status quo, contribuindo para a composição de novos cenários para a acumulação de capital. Um exame detalhado dos agenciamentos deste nosso laboratório de criação e improvisação que é a OE revela modos de micro-cooperação política que estabelecem uma espécie de pragmática clínico-estética-política entre seus membros, que atua como uma espécie de antídoto contra essa corrupção do desejo empreendido pela macro e micropolítica do capitalismo contemporâneo. Rogério Costa, Coordenador ———————– Presentation Why record free improvisation performances? Perhaps this is a contradictory and meaningless activity since one of the characteristics of this type of musical practice is its irreversibility: the performances are always unique and unrepeatable insofar as they are primarily related to specific time, space and conditions of its realization. There is no referent created previously (a theme, a harmonic structure, a defined form, etc.), there is no conductor or composer … Free improvisation is a space for relationships and presence and its agency is composed of desires, sensations and emotions that interact in real time. In addition, the agents are not only human (the performers with their personal and musical biographies, their desires and expectations at the time of the performance etc.), but also non-human (the instruments, equipment, microphones, architecture, acoustic conditions of the moment, the weather, etc.) and what is fundamental is what goes on between all these components. That is why we say that the context provides the text and that it is produced collectively and in real time. The original proposal of the Orquestra Errante is precisely the preparation of an environment conducive to this type of musical practice. Even so, we can point out some positive aspects: the recording can be thought of as a memory of an event as a photo or a film. When listening to the recording of a performance we get an idea of the assemblages, the forces at play, the negotiations and the conversations. And understanding these assemblages is much more relevant than issuing any eventual judgment of aesthetic value on the sound results of the performances. Here the aesthetic dimension is closely linked to the ethical dimension. Of course, in this type of listening, you lose what you can only experience at the very moment of the performance. But listening to a recording is also a kind of repetition that recovers the difference and allows other types of agency that may include people (listeners) who have not witnessed the performance. So it really may be worth recording free improvisation performances. But there is another important aspect of the recordings, which relates to the fact that the Orquestra Errante is not only dedicated to free improvisation. The group, which aims to prepare and maintain a horizontal and democratic environment, also dedicates itself to other forms of collective experimental creation, realizing performances in which real time coexists with some degree of previous preparation. In the recording of our CD, all members of OE were able to prepare, coordinate and produce a proposal. Each of these proposals – in the most diverse formats – was presented and discussed by the group before it was recorded and became a CD track (it is important to say that not everyone made proposals and that each proposal is adequately explained by its proponents in the texts that accompany the CD). In this process, OE incorporated practices that are made possible by the recording studio resources, using what is characteristic of this environment (overdubs, editions, mixing, etc.) For all these reasons, we believe that the group’s creative environment is also a space of resistance. We like to think that the assemblages that take place in this environment function as an insurgency strategy against the captures of desire promoted by neoliberal capitalism through the dissemination of certain values – egocentrism, individualism, meritocracy, consumerism, productivism and commodification of everything. Currently, these values are supported in Brazil by a hate speech characterized by intolerance, racism, misogyny, machismo and homophobia. This new format of neoliberalism associated with neofascism promotes the colonization of desire, capturing it to make it impotent and captive. The thus corrupted desire is used to reproduce the status quo, contributing to the composition of new scenarios for capital accumulation. A detailed examination of the agencies of our creation and improvisation laboratory, which is the Orquestra Errante, reveals ways of political micro-cooperation that establish a kind of clinical-aesthetic-political pragmatics among its members, which acts as a kind of antidote against this corruption of desire undertaken by the macro and micro-politics of contemporary capitalism. Rogério Costa – coordinator

Credits:

Ficha técnica ORQUESTRA ERRANTE: Abdullah Ismailogullari, live electronics; Caio Righi, saxofone; Chico Lauridsen, voz; Denis Abranches, luteria experimental; Fábio Martinelli, trombone e didgeridoo; Fábio Manzione, bateria e percussão; Guilherme Beraldo, violão; Inés Terra, voz; Mariana Carvalho, piano; Mariana Marinelli, saxofone; Marina Mapurunga, voz, viola e violino; Max Schenkman, voz e luteria experimental; Migue Antar, contrabaixo; Natália Francischini, guitarra; Paola Picherzky, violão; Rogério Costa, saxofone; Ronalde Monezzi, saxofone; Stênio Biazon, voz; Yonara Dantas, voz. Coordenação geral: Rogério Costa. Gravado entre setembro e novembro de 2019 no Estúdio LAMI USP Técnico de gravação: Pedro Paulo Kohler Mixagem: Pedro Paulo Kohler e Orquestra Errante Masterização: Paulo Assis – Audio Clicks Arte gráfica: Chico Lauridsen e Natália Francischini